Placard e Raspadinha - Quais São as Consequências da Oferta destes Jogos Sociais?
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) é uma instituição bem conhecida de todos, especialmente pela sua principal fonte de rendimento – os jogos sociais promovidos pelos Jogos Santa Casa.
No Plano de Actividades da Santa Casa para 2024, a entidade assume a grande dependência das receitas do jogo social do estado para financiar a sua actividade – “mais de 80% em 2022”.
Como é sabido, existem riscos associados a qualquer jogo. Neste artigo, falamos-te do impacto que o Placard e raspadinhas podem ter nos jogadores, pelo menos com a legislação e fiscalização actuais.
Explicamos-te ainda:
- Como é que a Santa Casa evoluiu até chegar a este modelo
- Que possíveis soluções existem para que a instituição esteja menos dependente do jogo social
Começamos por falar rapidamente do que é a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
A Sorte Sorri à Santa Casa
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa foi fundada em 1498 pela Rainha D. Leonor, ou seja, conta com mais de 500 anos no activo.
Criada em plena época dos Descobrimentos, o objectivo da SCML era proteger os mais desfavorecidos, fosse através da alimentação, educação, vestuário ou simples orientação.
Estes objectivos foram largamente atingidos, e foi desde cedo que mais responsabilidades foram adicionadas à sua lista, começando pela administração do Hospital Real de Todos-os-Santos.
Porém, no século XVIII passou por dificuldades financeiras, mesmo estando isenta de impostos, visto que sobrevivia essencialmente com base em doações.
O facto de parte do seu património ter sido destruído durante o terramoto de 1755 veio dificultar ainda mais a situação.
Foi então que, em 1783, uma nova fonte de receita foi concedida à SCML para poder continuar a sua obra: uma lotaria anual.
Os lucros desta lotaria, que passaria a ser o principal sustento da Santa Casa, seriam divididos inicialmente pelo Hospital de S. José, Casa dos Expostos e Academia Real das Ciências.
Foi nesse momento que a Santa Casa da Misericórdia descobriu a galinha dos ovos de ouro, apesar de ter demorado quase dois séculos a aumentar a sua oferta de jogo.
Em 1961, entrou em cena o Totobola, bem conhecido dos portugueses, cuja receita era repartida em partes iguais entre o apoio à reabilitação e a promoção do desporto.
Desde esse momento, e apesar da Santa Casa ter também tentado apostar no seu património imobiliário, multiplicou-se a oferta de jogos.
Em 2004 estes jogos começaram a ser explorados sobre a marca comercial Jogos Santa Casa. Onze anos depois, surgiu finalmente o Placard, a marca sob a qual são exploradas as apostas desportivas à cota.
A decisão de lançar o Placard teve um impacto muito positivo na Santa Casa. Segundo o relatório de contas de 2020 da Santa Casa, naquele ano o Placard acumulou um total de 507 milhões de vendas.
Este valor sobressai face aos 1440 milhões em vendas de raspadinhas, visto que estas são a maior fonte de lucro da instituição e alcançam uma fatia maior da sociedade.
O sucesso de ambos os jogos é óptimo para os cofres da Santa Casa e, indirectamente, do estado.
No entanto, questionamo-nos:
- É possível que o sucesso destes jogos e a forma como são operados ponha em causa a segurança dos jogadores?
Vamos responder a esta questão já de seguida.
Jogos Sociais: Um Problema Para os Jogadores?
Carl Rohsler, editor da 8ª edição da Gambling Law Review, assume no prefácio da publicação que a liberdade dos cidadãos para participar em certas actividades tem um custo social.
Porém, no caso da Santa Casa pode existir uma contradição, visto que a instituição tem por missão proteger os mais vulneráveis.
Não é um fenómeno exclusivo de Portugal, mas são os mais pobres que mais gastam neste tipo de jogos. Caso o vício do jogo os atinja, ficarão numa situação ainda pior.
Publicidade e Jogadores Vulneráveis
Uma das razões pelas quais grupos vulneráveis podem cair no vício do jogo é a publicidade fora das regras que estão na legislação. Descobre mais aqui.
O autor também explicava que a regulação de certas actividades com potencial impacto negativo na vida dos cidadãos ajuda a minimizar os riscos.
Um dos aspectos da regulação é o cruzamento de dados e verificação da informação dos jogadores. No caso do jogo online, em teoria cada jogador tem a sua conta.
Ou seja, os dados têm de dizer respeito a alguém que não seja menor nem esteja em auto-exclusão para poder aceder aos jogos.
Ou seja, não só existe maior possibilidade de protecção de quem joga, como também um registo de quem se auto-excluiu.
Isto permite monitorizar as tendências em relação ao vício e, a longo prazo, fazer ajustes na regulação do jogo para garantir a segurança dos jogadores.
No caso dos jogos físicos da Santa Casa, o controlo da identidade do apostador é menor.
Desde a comercialização do jogo que existem vários casos de menores na posse de boletins do Placard. Num deles, em 2016, foi o proprietário de uma papelaria em Alpiarça que vendeu os boletins.
Na altura, o Departamento de Jogos da Santa Casa defendia-se explicando que existe um regulamento (o Regulamento dos Mediadores dos Jogos Sociais do Estado).
Este definia que a venda a menores era proibida e que a responsabilidade da fiscalização era atribuída aos mediadores nos cafés, quiosques ou papelarias.
No caso do jogo online, também é possível contornar a verificação de identidade, utilizando a conta de outro jogador (por exemplo). No entanto, o acesso é claramente mais difícil.
O registo e verificação são uma barreira adicional a menores que não existe no Placard ou nas raspadinhas. No caso do Placard, basta ir a um café ou quiosque.
Quem fala de menores, fala também de outros jogadores susceptíveis ao vício do jogo, que podem até já estar a ser sinalizados e acompanhados de alguma forma.
O bloqueio do NIF é possível, mas contorná-lo é tão fácil como pedir à pessoa à frente na fila para comprar.
Ao mesmo tempo, de certa forma esta questão do vício e do jogo por menores vem da popularidade crescente das raspadinhas e do Placard.
O equilíbrio entre sucesso comercial e protecção dos jogadores é delicado – implica vender a mais utilizadores, sem aumentar a percentagem de jogo patológico.
Por um lado, os Jogos Santa Casa têm políticas de Jogo Responsável. Uma das últimas campanhas já atingiu um grande número de utilizadores do Facebook.
Por outro lado, o Placard continua a publicitar a sua oferta nos principais canais – ainda que dentro das regras da publicidade ao jogo.
Aliás, ainda na segunda metade de 2023 o Placard lançou a campanha Febre da bola, para marcar o regresso das principais competições nas quais permite apostas.
A publicidade esteve presente em mupis, televisão, rádio e digital, entre outros.
Por fim, existe a questão da tributação diferenciada entre o Placard e os jogos online.
Por exemplo, num prémio superior a 5000€ no Placard (e noutras opções dos Jogos Santa Casa), o apostador deve pagar 20% ao estado.
No caso das apostas legais online, não é o jogador quem paga o imposto – é a plataforma online.
Impostos nas Apostas
Descobre como funcionam os impostos sobre apostas em casas legais em Portugal.
À primeira vista podem parecer boas notícias para ti, mas na verdade não são.
A casa terá de pagar 25% de imposto sobre a receita bruta dos jogos de fortuna e azar (no casino) e 8% sobre o volume total de apostas.
Em parte, estes valores explicam a falta de interesse em gigantes como a Bet365 ou a Betfair entrarem no mercado português.
Ou seja, poder-se-ia afirmar que um regime de tributação fiscal mais justo poderia tornar a rentabilidade do jogo online mais interessante para as casas de apostas online.
Não só a oferta como a variedade de opções seria maior, o que beneficiaria os jogadores.
Teriam ainda acesso a uma rede online onde é mais fácil o controlo do jogo por menores e prevenção do vício do jogo.
Claro que isto poderia significar uma perda de receita para o Placard, o que poderia deixar a Santa Casa em maus lençóis.
Mas afinal, porque é que a Santa Casa está tão dependente da receita das raspadinhas e do Placard?
As Dificuldades de Gestão da Santa Casa
A SCML não é uma vulgar empresa privada cujo objectivo é o lucro dos accionistas. É uma entidade de direito privado, mas com utilidade pública.
No entanto, existem figuras públicas que consideram que neste momento não existe o melhor equilíbrio entre as duas vertentes.
Em 2013, Pedro Santana Lopes, provedor da instituição na altura, explicava que a Santa Casa não podia substituir o Estado de forma ilimitada.
Estava em causa, em 2010, a passagem de 35 equipamentos do governo para a alçada da SCML.
Esta operação levaria a um acréscimo de 22 milhões de euros no orçamento anual da instituição.
Por equipamentos entendem-se lares de idosos, de apoio à deficiência, creches, entre outros.
Essas declarações tiveram impacto impacto reduzido – em 2015, o Jornal de Negócios dava conta da passagem de mais 24 equipamentos, “de forma gratuita”, para a Santa Casa.
Assim, não é de admirar que ao longo dos anos a despesa da Santa Casa com pessoal tenha aumentado.
À data, o Placard ainda não tinha sido lançado. Olhando para o crescimento na receita a que levou, é fácil de ver que a aposta da Santa Casa (passe a expressão) poderia equilibrar as contas.
Porém, há algumas questões a considerar.
A primeira é o facto da receita proveniente dos Jogos Santa Casa não ser exclusivamente para uso da SCML.
Aliás, a maior percentagem desta receita vai até para outra instituição – o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
Destinatário | % |
---|---|
Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social | 40.8% |
Santa Casa | 34% |
Instituto do Desporto e Juventude | 11.4% |
Fundo de Fomento à Cultura | 4.2% |
Protecção Civil | 3.4% |
Outros (Inclui Governos Regionais e Gestão da Tesouraria) | 6.3% |
A segunda é o facto de os custos operacionais terem aumentado durante vários anos, especialmente no que toca ao dos salários dos colaboradores.
Grande parte da responsabilidade está no número crescente de funcionários que trabalham para estes equipamentos agora sob a alçada da SCML.
No Plano de Actividades da SCML para 2024, consta que as despesas com pessoal representaram 63% das receitas de 2022.
Por outro lado, esta não é a história completa. Está em curso uma investigação por parte do Ministério Público em relação à entrada directa de algumas contratações para o topo do índice remuneratório.
Entre Maio (altura em que tomou o lugar) e Novembro de 2023, a actual provedora da SCML, Ana Jorge, extinguiu 40 cargos de chefia. Esta medida permitiu a poupança de mais de 1 milhão de euros em salários.
Por fim, uma das últimas polémicas que retratam aos desafios na gestão da SCML é o caso da Santa Casa Global.
Criada em 2021, a Santa Casa Global tinha o intuito de desenvolver parcerias internacionais para a exploração de lotarias, podendo-se assim tornar numa fonte adicional de receita.
A operar actualmente em Moçambique, Peru e Brasil, foram entretanto encontrados “negócios confusos e mal explicados” neste último país
O resultado? Um investimento inicial de 5 milhões de euros, os quais passaram a 27 milhões, sem que existisse autorização do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social.
A Santa Casa acabou por cancelar a parceria com o Banco de Brasília relativa à exploração do jogo e lotaria, evitando assim a perda de mais 14 milhões de euros.
Somando tudo, é natural que a Santa Casa precise de maior receita ano após ano para dar conta de todas as despesas operacionais.
Qual o Futuro da Santa Casa?
Resumindo, a Santa Casa está demasiado dependente da receita dos Jogos Santa Casa e tem uma longa lista de encargos a suportar.
Isto cria algumas dificuldades:
- A necessidade da promoção do jogo de forma a gerar receita, mas mantendo a protecção dos jogadores
- A forte dependência da receita das raspadinhas e Placard para financiar as operações (representam mais de 2/3 das receitas dos Jogos Santa Casa)
O problema de raíz parece ser, como sugeria Santana Lopes, citado no início do texto, o facto de a Santa Casa estar a substituir algumas responsabilidades do estado.
É difícil discordar da afirmação, tendo em conta tudo o que foi listado até aqui.
A Santa Casa contribui para a Segurança Social, desporto federado e até para os governos regionais.
Por um lado, é evidente o esforço da Santa Casa para tentar organizar a sua estratégia e as suas contas nos últimos meses.
Algumas já foram referidas ao longo do artigo, mas é importante listar o que está a ser feito ou já está concluído:
- Cancelamento do projecto de internacionalização no Brasil;
- Garantia de apoios ao desporto federado para 2024;
- Aposta no imobiliário que detém para diversificação da receita;
- Eliminação de cargos de chefia para redução de despesas.
Por outro lado, o investimento nos jogos sociais está até a ser ampliado, com a chegada da lotaria Euro Dreams.
No que toca ao Placard, pese embora o esforço na promoção do jogo responsável, não há alterações dignas de registo.
Isto é um problema, na medida em que uma situação como a de 2020 pode apanhar a Santa Casa novamente de surpresa.
Recorde-se que, muito por culpa da pandemia, o lucro dos diferentes jogos teve uma queda de cerca de 33 milhões na receita entre o 1º semestre de 2018 e o 1º semestre de 2023.
Da mesma forma, o Placard é um jogo que se compra ao balcão.
Até quando continuará a crescer o Placard, tendo em conta o aumento constante de novas contas de jogador nas casas de apostas online, especialmente entre as camadas mais jovens?
Segundo o relatório do 3º trimestre de 2023 do SRIJ, houve mais 7.8% de registos do que no trimestre anterior, num total de 205,2 mil. Destes novos registos, 65% são feitos por jogadores entre os 18 e os 34 anos.
Não é difícil relacionar estes dados com a melhor oferta dos sites de apostas online, por um lado, e com a maior resistência ao digital dos apostadores mais velhos.
Que Soluções Para a Santa Casa?
A verdade é que, mais do que uma optimização de processos ou expansão da oferta dos Jogos Santa Casa, talvez a solução para a sustentabilidade da SCML seja uma mudança de paradigma.
Afinal de contas, o modelo das lotarias enquanto fonte de receita para as benfeitorias data do século XV – numa época em que não existia estado social.
Por isso, a resposta mais simples é a passagem de várias das responsabilidades da Santa Casa de volta para outros orgãos do estado.
Esta medida, associada à tentativa de diversificação de receita com o investimento em imobiliário, permitiria à SCML menor dependência da receita dos Jogos Santa Casa.
De acordo com Garvia, num artigo de pesquisa acerca das lotarias europeias nos séculos XVIII e XIX, tanto a França como a Grã-Bretanha aboliram as lotarias do estado no início do século XIX.
As razões para tal foram a modernização precoce dos seus sistemas fiscais e o facto de a receita desta fonte ser negligenciável face a todas as restantes fontes de receita do governo – não é o caso de Portugal.
Por outro lado, na Europa Central (por exemplo, na Alemanha) chegou a existir a adopção de lotarias de classes.
Parte da razão para este tipo de lotaria era afastar os mais pobres do jogo, visto os valores de entrada serem maiores. Não funcionou, mas a ideia não deixa de ter valor.
Se olharmos para muitos dos jogos actualmente oferecidos pelos Jogos Santa Casa, 1€ ou 2€ chegam para começar, sendo que o problema existe quando estes montantes são jogados repetidamente, dia após dia.
Para acabar, uma ideia diferente: independentemente de quem oferece e como oferece o jogo, haverá sempre oferta enquanto houver procura.
Tendo isto em conta, sendo o jogo social gerido de que forma for, o que realmente importa é existir legislação e fiscalização que permita diminuir o vício.
Nada do que foi discutido atrás parece estar em cima da mesa.
Aliás, no início deste ano foi publicada uma portaria a declarar que o Ministério da Administração Interna e a Protecção Civil iriam receber 3.6% dos lucros dos jogos sociais explorados pela SCML.